quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Desirée (I)



Pó de arroz, lábios ultrajantes e os olhos imitando esfinges egípcias. Cópia barata de Cleópatra, pronta para se perder mais uma noite... Desirée disfarçava-se de si mesma e buscava sentir o vento gelado da noite, buscava sentir algo em sua noturna, maquiada e destruída imagem. Era hora de sair, havia combinado com os amigos. Claro que ela ainda os amava! Só não mais sentia o mínimo prazer em estar junto deles.

“Paizinho, vou sair com meu pessoal, me divertir um pouco, de manhã volto. Não me espere acordado. Beijos, te amo.”

“Pai, estou a me desfazer, deitarei meu corpo na sarjeta e entregarei minha virtude deste dia para qualquer um, mais uma vez. Te amo.”

“Meu pai, livra-me de mim mesma! Já não suporto ter uma existência tão vã, dói tanto essa solidão que sinto... Por favor, me abrace e diga que me ama!”

- Aonde você vai menina?
- Sair com uns amigos...
- Mas você não disse que estava indisposta hoje? Tudo frescura, não? E vai sair assim?
- Assim como?
- Vá logo, vá! Ta atrapalhando meu futebol.
- Até...

O caminho era o mesmo de sempre até o ponto de ônibus. Isso permitia que ela errasse em pensamentos, afinal o trajeto não exigia atenção alguma; ligava no automático e fingia ser alguma diva gótica venerada por legiões de fans, imitada por adolescentes depressivas e desejada por metaleiros loiros e de longos cabelos. Seria chocante para a mídia e para todos os seus admiradores, as noticias de seu suicídio. Como seriam as manchetes?

“Ah, Desirée...”

Não! Voava para outras terras, outros pensamentos... Será que conseguiria sentir algum tesão na vida? Mas já sentia. Era uma verdadeira orgia! Ora um carinho vertia em orgasmo, ora uma lufada a violava. Engraçado... E quando nem alegria nem tristeza a envolviam, um absoluto nada tomava sua alma, trazia certo repúdio ao bem e enjôo ao mal. Onde andaria o equilíbrio? Em seus próprios olhos? Certamente que não. A beleza da Lua poderia trazer certo êxtase para si e ainda sim tudo permanecia sem sentido.

“O que sou? Um crucifixo sem simbologia.”

A religião perdida. Ou Deus (as duas coisas não passam de sinônimos, não é?).

- A religião da vida é que me derruba na lama do pecado.
- O que disse? – perguntou o cobrador, confuso.
- Nada, não – correu a sentar no último banco no busão, vexada e aliviada de que naquela hora da noite quase não haviam pessoas nele.

“É como se a religião fosse uma redoma que aprisionasse a verdadeira verdade...”

“Verdadeira verdade...”

“É sério. Seria soberba demais achar que estou além da religião? Que sou o próprio Deus?”

“A futilidade é tão mais segura. Calarei a minha boca.”

Calarás o teu espírito? Jamais. O silêncio de sua mente dá lugar à exultação de seu coração. As luzes amareladas da cidade, carros luxuosos e miseráveis, jovens rindo jovens chorando tudo por dentro, prostitutas batendo o cartão para mais uma noite de trabalho, cães fiéis ao desamparo de seus donos mendigos. Isso é o mundo – palpita. Isso é o mundo.

(continua :)

Magia, Paixão e Poesia - Decifra enquanto te Devoro

(foto: Céline Derrien by Saverio Cardia, Pizza)

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