quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Em três atos

ATO UM

Uns olhos eu espiei pela janela do apartamento.

A manhã estava gelada e era tanta neblina que desconfiei que as nuvens houvessem baixado ou então meu prédio havia sucumbido às alturas e eu morria - morria e o paraíso é bem idêntico à Terra: as ruas íngremes lá fora, a grande ladeira, o senhor que caminha solitário até a padaria, cão de rua e a rotina universitária. Mas não, nem subida aos céus ou descida deles até a borda da minha persiana... Era só o inicio de uma manhã européia. A verdade é que me acostumara tanto com o calor preguiçoso do Brasil, meus colegas de quarto marchando a marchinha do atraso e aquele sol ultrajante querendo violentar as portas e frestas, que a tão sonhada atmosfera úmida e fria (não queria usar essa palavra, estou procurando um quê mais adequado para o que sinto todos os dias ao aspirar o frescor, um quê mais solitário), úmida solidão desse país me pega de surpresa todas as manhãs! Eu adoro me surpreender todas as manhãs - adoro essa solidão úmida e fresca, mas temo tanto quando ela se tornar a dama da nevasca... O inverno.

Uns olhos eu espiei pelo vidro, dançando em espirais.

Quando morava no campus da capital, cento e cinquenta e sete passos do prédio da faculdade, eu seguia certo ritual matinal que não vem ao caso no momento, mas que tinha como objetivo não uma espiritualização com um Ser Supremo. Era puro intento de atraso! Jamais gostei de chegar cedo na sala de aula, ter que escolher um lugar, ver todos que chegavam... Meus amigos diziam que isso era um tanto esquizofrênico. Tudo bem, entre amigos rimos e partimos para outra prosa qualquer. Eis o atrito: um dia uma amiga de uma amiga (essa espécie tão constrangedora), por simplesmente ter na carteira da universidade o título de aluna da graduação em psicologia me disse: "você é excêntrico. Não gosta de ser a platéia e sim o palco. Se você chegasse antes de todos, não te notariam." Claro que respondi à insolência da tal pseudofreud. Com a sobrancelha direita sobressaltada, o suspiro desdenhoso, a mão esquerda na cintura, minha chacoalhada de cabeça em sua direção e: "gênio". A coitada me definiu pelo ascendente, e não pelo signo.

Aqui o rito se repete, eu abuso do vento e dos cigarros, entro para a classe. Quero que girem suas cabeças para trás, para a porta ver o intercambista chegar, quero que o professor faça uma pausa e olhe por cima dos óculos condenando-me ao purgatório; enfim, quero espalhar meus cadernos e livros sobre a mesa e desenhar desenhar desenhar... Ah, minha querida! Não somos mais colegiais! Eu me atraso porque não nasci para aberturas, prefiro a vida brusca.


Aqueles olhos jamais encontrariam os meus, aquela vida jamais seria apresentada a minha. No entanto eu lhe invadia uns instantes, atrasado, ignoto.


Ninguém questiona. Pouco se sorri e apesar do frio, observo muitas ausências de abraço. O mais incrível é que depois de vinte e três anos de angústia calada eu sinto que encontrei lar. Nesse lugar onde o outono é realmente outono e o amor tende à quietude... Longe do espírito carnavalesco da minha terra, longe até do colo materno! E poucos tentam cruzar uma amizade comigo. Antes de vir para cá palpitei muito que seria O Intercambista, no entanto sou ninguém. E é delicioso... Nem palco nem platéia: coxia. Estou "em casa".

Estava. Até hoje, quando minha luz se rebelou e caiu levando a terça parte do meu ser até a queda mais profunda, aquela dos olhos que percorro do outro lado da rua, no sexto apartamento do prédio vizinho.


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