sexta-feira, 15 de julho de 2011

A coisa faminta

Tem uns olhos de drama operístico, pintados feito corvos lancinantes; tem o grito sepulcral na pupila negra. Houve quem se atrevesse a encarar o óculo da coisa e houve perdição. O lábio inferior carrega um frêmito cadente, como se prenunciasse a vertigem ultima, o destroçar em morte. Mas não... É apenas fome. No canto escuro, arrastando-se outrora, hoje apenas em quietude, sente o limite glacial de seu corpo: não é nenhum refúgio da existência, é a carcaça abandonada de um ser-coisa desgraçado. Imundo, renegado por deuses (todos eles), sem princípio e maternidade. No entanto, vivo! Pois a fome cercava o peito, o coração, o estômago e os sonhos.

- Vivo, logo sonho.

- Sonho, logo sofro.

As pernas da coisa quase amorfa contorciam-se de frio, às vezes juntando-se com os braços magros num movimento de força: queria fundir-se todo em vazio. Ou ao menos não chorar. Convulsionava de um lado ao outro como um pêndulo, contando as horas para o fim da eternidade e até cantarolava uns sons roucos, falseados, distraindo a insanidade que tanto a assediava. A coisa viveu dia após dia carregando o peso da escuridão à sua volta. Mas uma coisa ela amava, uma coisa ela adorava religiosamente:

Devorar.


Ah... Com brilho satânico, serpenteando dor e luxúria, fazia de suas entrelinhas iscas à carnificina. E devorava com a violência do pré orgasmo. Ririam de sua figura patética, miserável que fosse. E encararia a Eternidade castigando-a por todos os lados daquele quarto! Desde que pudesse consumir até as últimas entranhas de seu alimento vivo.


Assim, voraz, a coisa vai te cercando. Voraz, ela te seduz com tal aspecto fantástico lúgubre. Voraz, ela te chama para perto e pede: decifra-me? Voraz, a coisa faminta vai destroçando a tua alma.


Voraz, a coisa te devora.




2 comentários:

  1. me lembra bastante Kafka, mas, mais sombrio. gostei!

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  2. Olha, vc é genial cara! Eu consigo sentir a sensação de estar prestes a ser realmente devorada enquanto leio seu texto. São engolida pelas palavras.Amei a imagem tbém!

    bjO

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