terça-feira, 3 de abril de 2012

Em três atos

ATO TRES


Exausto eu tateio o telefone no escuro: "Allo"

Hoje foi dos tais dias em que eu luto incessantemente (minhas armas falíveis são sempre os estudos e o piano) e no fim me rendo cabisbaixo e recuo num canto. Começo a pensar na vida. Na verdade não eu, é ela própria que invade minha privacidade e inicia sua tortura.

A impressão de se sentir exilado há um oceano de distância de onde você propriamente é, é que não há um chão que te queira. Perde-se a esperança. Lá onde o dia é frondoso e a noite agradável ou aqui onde o dia é lacônio e a noite sedutora, onde quer que eu esteja... Basta encontrar um olhar perdido e então me dou conta: de quão perdido é meu próprio olhar. Antes pensei ter vindo para cá procurar minha esperança e ofendido dei-me conta de que havia deixado-a aos pés na praia, onde nasci. Talvez as ondas as trouxessem a mim – se suas danças não fossem ludicamente verticais! Mas não... Dissolveu no sal e eu vi que o que pari era mais uma ilusão: nem busquei nem esqueci. A esperança sou eu por dentro. E ando cansado de virar do avesso atoa. Calo meu movimento. Calei. Silencioso. Em todo lugar eu sou, todo lugar eu quero. E toda terra me foge.

Retribuem minha saudação sonolenta. O idioma do outro lado da linha é português e o timbre é fraternal.

Nunca soube quem era aquela garota na janela vagando com a órbita ocular sem uma procura... Tanto invejei... Uns olhos que passeavam cegos, olhando somente o interior. Por dias, todos os dias até hoje, eu a procurei nas esquinas; comecei a visitar os cafés próximos do bairro, ansiando sua companhia; conheci as bibliotecas, praças e museus, frequentei assiduamente todo o tipo de filas e assisti colóquios alheios. Era ela uma estudante também? Ou parente de algum estudante e que estava de visita naquela manhã?... Miragem? Essa sua existência duvidosa atrai-me ainda mais intensamente. Meu maior antagonismo: alguém que não é e que não procura, alguém que vive.

Procurei subir ao topo do mundo, onde situa o cemitério mítico da cidade, me proclamei coisa viva e prometi ascensão. Uma do tipo espiritual, consistente na minha satisfação de ser. E livre. Não resisti e caí na subjetividade, privei-me de deuses e salvações. Onde fica minha casa? Onde meu olhar pode tomar leito? No frio que é todo meu estive nu. Europeu. Mais numerosas vezes não resisti. A vida é isso: pura sedução e fraqueza.

Estou quase desperto e é engraçado que não compreendo bem o que meu tio diz ao telefone. Mas é família.

Na falta de procura que me impus eu procurei. Lares e certezas.

No fim, parece tudo perda de tempo, antagonismo calculado. Coisa inédita é só o pós-morte. Qual é a minha? Doendo e engrandecendo. Por que eu escrevo tragédia em papéis virgens?

A voz do outro lado embaralha palavras e tremula fonemas. É um misto de soluços e silabas de um idioma que eu já me desacostumara a ouvir. Mas meu. A mensagem eu entendi toda: uma moça levemente embriagada em alta velocidade, atropelamento, meu pai na UTI em estado grave e. Ensurdeci... Meu irmão morto.

Estações, hemisférios, humanos. Por que tanta tragédia em papéis virgens?

Voltar para casa... Minha.

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